João Abel Manta, <br>cronista de Abril

Manuel Augusto Araújo
32 anos depois da Revolução de Abril, rever os «cartoons» de João Abel Manta, é reviver alguns dos momentos fortes que balizaram a história daquele tempo que se viveu em aceleração apaixonada, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro.
Se naquela altura radiografavam à velocidade do pensamento o que estava a acontecer, hoje são parte imprescindível da história da Revolução. Não perderem a ironia, feroz e subtil, com que João Abel Manta dissecava os sucessos desses dias traçando um mapa que nos continua a orientar pelas estradas vertiginosas do que ficou conhecido por PREC.
Eram comentários urgentes e acutilantes, feitos em cima do acontecimento e o que era e continua a ser espantoso, é nunca perderem o norte e acertarem sempre no alvo com uma precisão tão rigorosa que só é comparável à certeza cinematográfica dos golpes de kung-fu.

Em João Abel Manta a inteligência cortante, ancorada numa vasta e sempre actualizada cultura, distingue os seus «cartoons» desde os primeiros publicados na revista de Arquitectura aos que se seguiram no Almanaque ou no suplemento literário do Diário de Lisboa ou nas ilustrações do «Dinossauro Excelentíssimo», personagem que criou em parceria com José Cardoso Pires em que se retratava Salazar-o-Botas, parceria que continuou no «Burro em pé», uma peregrinação pelas comarcas de Portugal em demanda dessa personagem difusa mas muito popular por essas paragens.
Arquitecto de profissão (um dos melhores conjuntos arquitectónicos de Lisboa, os blocos na avenida Infante Santo, são projecto que realizou com Alberto Pessoa e Hernani Gandra), pintor e desenhador por vocação, cartonista por gozo pessoal e para nosso gozo, o traço mesmo quando é grosso é de um rigor deslumbrante e filia João Abel Manta entre os Bordalos, os Steinbergs, os Daumier ou os François, colocando-o como um dos melhores cartonistas de todos os tempos
É evidente que não é indiferente ao risco dos «cartoons» o saber adquirido enquanto desenhador e pintor onde evidencia um saber, um talento e uma originalidade que o destacam mesmo quando deliberadamente procura um academismo palpável, para se demarcar de uma pintura que só existe como arte pelo que se diz sobre ela.

A história contemporânea de arte portuguesa, ensarilhada nas contradanças dos marketings mais diversos, não tem dado a devida atenção a este artista que ocupa um lugar destacado na pintura, no desenho, na ilustração, no cartoon, nas maquetas de cenários, na tapeçaria e na arquitectura. Raramente alguém verteu o seu talento invulgar por tão diversas áreas, realizando obras como, por exemplo, os cenários para Shakespeare, a tapeçaria que foi premiada e figura no salão nobre da Gulbenkian, as ilustrações da «Arte de Furtar», o desenho distinguido na II Exposição Gulbenkian ou o já referido bloco de habitações na avenida Infante Santo.
Já é tempo de se realizar uma retrospectiva de toda a sua obra.

Em Abril há que lembrar que a história de Portugal entre Junho de 1969 e Novembro de 1975 pode sofrer um terramoto, pode ser objecto das melhores ou das piores rescritas, mas existindo os «cartoons» de João Abel Manta, a nossa memória e a memória do país está garantida pelo registo e o selo branco de um dos nossos maiores artistas.
Olhar hoje para os «cartoons» de João Abel é reviver um tempo que alguns de nós vivemos exaltantemente, mas é igualmente descobrir como o seu fazedor coloca o cartonismo entre as artes maiores.


Mais artigos de: Argumentos

A Guerra dos Dois Mundos

Se o povo pobre tem as suas lutas (contra a fome e o desemprego, em defesa dos seus direitos, pela construção de uma frente comum), também os ricos têm as suas (domínio dos mercados, esmagamento da concorrência, crescente fusão de capitais, expansão). Desta cisão resulta, na fase actual, a noção de que os ricos serão...

A madrugada

Este ano, a participação da RTP nas celebrações de Abril revestiu-se de uma singularidade muito significativa: concentrou-se na própria madrugada do dia 25, digamos que ainda no prolongamento, desta vez mais extenso do que é habitual, da emissão da véspera. Na verdade, entre a uma e tal da noite e as seis horas da...